terça-feira, 6 de agosto de 2013

Para a Eternidade


Mal saíra do hospital e já estava novamente no bar.
“Se continuar vivendo assim, vai morrer” lhe disse o médico enquanto a porta fechava e ele acendia uma cigarro.

“Você também, doutor, vai morrer se continuar vivendo” disse ele guardando o isqueiro no bolso.

“Não foi iss…”A porta fechou-se e ele não ouvia mais nada.

O calor estava insuportável. Já não aguentava mais esse calor. Sua camisa branca já mostrava as marcas de suor na região da barriga e costas, sua fronte escorria, enchendo as sobrancelhas daquela água salgada e etílica que emanava do seu corpo. Dava para sentir o gosto do whisky da noite anterior. O gosto de whisky, o gosto de buceta e aquele gosto amargo.

Ele – esse cidadão sem nome – comprou uma garrafa de vinho barato, daquele vinho que foi proíbido de vender na cidade, e sentou-se na Avenida Paulista para olhar o gado e imaginar os fazendeiros.

Quando foi? Quando foi que eles conseguiram enganar a todos? Ou pelo menos quase todos. Quando foi que escrever um livro, ter um filho e plantar uma árvore virou verdade nacional – ou seria internacional? Quando foi que colocaram na nossa cabeça que temos que morrer o mais velho possível, o mais tarde possível, mesmo que isso envolva noites de desespero familiar numa cama de hospital, com um corpo estragado por tubos e medicamentos. O cérebro ainda funciona e ele fala – me mate – mas ninguém ouve.

Ninguém.
Ouve.


Levantou-se. Cansou de observar quando as lágrimas começaram a escorrer-lhe da face. Vivia num mundo que não lhe fazia sentido e cada vez mais seu coração ficava apertado pela ausência de profundidade, de verdade, de realidade desse mundo. Foi por causa dessa ausência que ele sempre preferiu aquilo que não fazia parte.

Ele não fazia parte.

As prostitutas da baixa classe sabem o que é a vida mais do que as vagabundas da televisão. Os bêbados do centro da cidade sabem mais desse mundo do que aqueles alcóolatras engravatados que se formaram em Harvard. Os viciados em crack da Luz são mais honestos do que aqueles que tomam remédios para curar a tristeza.

“VIVA A SUA TRISTEZA!” ele gritou defronte uma farmácia.

Sabia que sua vida não duraria muito, mas isso não lhe importava. Preferia a morte de indignação aos 30 anos do que a morte de servidão aos 85. A cada queimação no estômago, a cada aperto no peito, a cada catarro mais escuro ele sentia o toque da tão esperada amiga.

“O que tem do outro lado?” ele perguntara para a vagabunda mais suja que já havia transado sem camisinha.

“alguma coisa melhor que aqui” respondeu-lhe depois do pico de heroína.

Os anos foram se passando na vida desse cidadão sem nome. Ele continou comendo suas comidas gordurosas, continuou sem fazer exercícios e comendo vagabundas sujas sem proteção. Continuou fumando seu maço de cigarro por dia e bebendo suas três garrafas de whisky por semana. Whisky barato, no seu quarto barato, da sua casa barata.

As baratas continuavam rodando o local trazendo mais alegria para ele do que toda a humanidade, com exceção de algumas pessoas. Algumas poucas pessoas que o os anos lhe roubara.

Os anos se passaram e, mesmo que ele tentasse diariamente, sua amiga não vinha lhe visitar.

“Acho que a morte esqueceu de mim”dizia ele para os bêbados do centro da cidade. Para aqueles mesmos bêbados de 100 anos atrás que ainda esforçavam-se para serem diferentes.
Aqueles bêbados que já foram artistas, atores, autônomos, autistas.

Agora nada restava para aqueles bêbados, a não ser a certeza da loucura que eles nunca quiseram tratar com escolas e universidades e chefes e certezas.

“Quando abre-se mão de tudo, até da morte você escapa.” Ele pensou antes de pular da ponte e sair nadando rio abaixo.

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