sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Preconceito à Feliccianna

É nojento. Nojento, e repugnante. Não é nada natural, não! Não é e não pode ser. Eu não consigo entender como existem pessoas que podem comer queijo. Queijo é leite podre! 

Não, tudo bem. Se existem algumas pessoas doentes que realmente sentem prazer em comer queijo, que o façam... Mas não na minha frente, né? Nem em público! Cada um faz o que quiser com o próprio corpo, digo, a própria boca, desde que entre quatro paredes. Não sou obrigado a ver isso!

E outra, o que as crianças vão pensar? Imagine se meu filho vir alguém na rua comendo queijo? Como vou poder explicar para ele que aquilo é abominável, é errado, mas ainda assim tem gente que faz?

Não, veja bem: eu não tenho nada contra quem gosta de comer queijo. Só não acho que isso deve ser incentivado assim, né... O que esse povo quer é uma ditadura do queijo! Querem fazer lavagem cerebral na criançada pra que todo mundo aprenda a comer queijo. Cara, que absurdo! Não vêem que isso é errado? E além disso, é sabido que queijo causa esterilidade. Se ensinarem nossas crianças que comer queijo é bom, todo mundo vai comer queijo e o mundo não vai mais se reproduzir! Daí a humanidade acaba!

Claro, tem pessoas que gostam de comer queijo mesmo tendo sido criadas em famílias que detestam queijo. Há pais que mesmo nunca tendo sequer tocado uma muçarelazinha de leve têm filhos que são alucinados por gorgonzola e outros queijos azuis - ECA! Mas, então! Se sem ser incentivado já é assim, imagine só se for! Loucura! Cara, não pode ser.

Não, cara. Não tem nada a ver. Comer carne não é igualmente nojento, porque carne é natural! A gente nasce sabendo que carne é bom, e além disso, tá na bíblia. Não dá pra querer comparar uma coisa com a outra. E outra, pode ver, 90% da população adora comer carne e detesta comer queijo. Se fosse natural comer queijo, então pelo menos metade das pessoas no mundo iria gostar disso, não acha? Mas, sabe, eu não tenho preconceito... Acho que se querem legalizar esse negócio de comer queijo, tudo bem, mas podiam então fazer um plebiscito, né? Aí o povo vai - democraticamente - escolher se isso é ou não bom. 

Como assim isso não pode ser feito?Tá maluco, cara? Você tem medo da democracia? Ora, não é questão de submeter o direito de uma minoria já marginalizada e oprimida ao beneplácito de uma maioria preconceituosa, isso é democracia, cara! 

Não, eu não sei por que a Princesa Isabel não fez um plebiscito para abolir a escravidão. Mas devia ter feito, né? E se a maioria dos eleitores - que na época eram só brancos, já que escravo não votava - escolhesse pela manutenção da escravidão? Ora... É a democracia né, meu!? Não tem muito jeito não...

Não, cara. Não posso aceitar isso... Pessoas não podem sair por aí comendo queijo como se isso fosse normal! Eu sinceramente acho que isso é questão de criação, cara... Faltou a molecada levar uns tapas quando era pequena pra aprender que comer queijo é errado. É que a sociedade de hoje é muito cheia de frescurada! Nem educar os filhos a gente pode mais!

quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Efêmero

Foi quase. Quase um desespero, um grito abafado, quase um soluço. Foi quase uma vida, foi quase um amor. Quase deu certo, por pouco não rolou. Foi assim, foi quase. A vida inteira dele havia sido quase. Quase triste, quase feliz, quase lindo, quase quase.

Quase se formou, quase teve um bom emprego, quase foi promovido, quase se casou.

E a ânsia medonha desse meio-termo xôxo era o que mais o afligia. Seja quente ou seja frio, porque se for morno, eu te vomito. Mas era morno e ele sequer conseguia vomitar. Ser obrigado a conviver com a própria mediocridade dia após dia é uma pena pra lá de cruel. É desumana.

A teoria do caos diz que o bater das asas de uma borboleta pode gerar um tufão do outro lado do mundo. E se fosse assim? E se uma borboleta tivesse batido as asas em algum momento lá no passado? E se ele não tivesse nunca ido àquela festa? Ou acertado aquela última questão da prova? Se ela nunca o tivesse convidado para sair? Se ele nunca tivesse quase se apaixonado? E se ela nunca tivesse quase tentado fazer dar certo? E se eles nunca tivessem quase se casado?

O medo não é da altura, é da queda. Andar na beirada não é o problema, não cair e nem recuar é que é. A vida é breve, ou quase breve. Todos são ótimos em alguma coisa e horríveis em tantas outras. Extremamente bem sucedidos nos negócios, uma negação no amor. Genial com números e uma aberração com palavras. Um gênio da prosa e uma mula dos cálculos. Ele não. Ele era mediano em tudo. Era nota cinco. Era insosso, era cinza. Era despercebido, era quase. 

Era quase, e ser quase na vida foi a sua sina. E a vida inteira, quase viveu. E quase viver é pior do que morrer. 

sexta-feira, 11 de outubro de 2013

Não é muita coincidência o amor da sua vida aparecer justamente na sua vida?

Era engraçado. Na verdade, era assustador e engraçado. Parecia que eles se conheciam há dez anos mas, ao mesmo tempo e paradoxalmente, parecia que há dez anos não se viam.

Ele se sentia como se estivesse há dez anos esperando que ela aparecesse ali, na sua frente, com uma taça de vinho na mão, para ouvir com cara compenetrada todas as suas histórias malucas, seus projetos mirabolantes, suas mil e uma teorias sem sentido, suas análises críticas amadoras e profissionais sobre músicas, poemas, bulas, tratados e marcas de macarrão.

Era como se há dez anos ele esperasse por ela sentada do seu lado contando seus planos, suas músicas favoritas, suas viagens, suas histórias e suas teorias. Era como se aquela risada espontânea estivesse há décadas esperando unicamente para surgir ali, naquele rosto paradoxalmente familiar e desconhecido.

Era isso. Quando ele a via, parecia que o tempo parava. E ele não sabia por onde começar! Era tanta coisa pra contar, pra perguntar, pra rir, pra dividir. Era tanta dúvida! Não sabia como conciliar beijos, abraços, e diálogos. Porque, afinal de contas, a sensação era essa: há dez anos que ele acumulara abraços, beijos, promessas e histórias sem sentido, diariamente, para contar – só pra ela. Mas ela nunca apareceu... E aí, de repente, ela se materializa alí na sua frente, com aquele riso bobo lindo na cara, e é hora de esvaziar o estoque, de limpar as prateleiras! Mas haja tempo pra colocar tanto papo em dia!

Porque o restaurante sempre fecha, o relógio sempre toca, o trabalho sempre chama. E aí fica aquele sentimento de “espera aí! Falta só mais uma coisa!”, e a frase dita pela metade. E os versos flutuando pelo ar enquanto ela se afasta do carro e entra em casa...E a porta se fecha... E a saudade dá aqueles tapinhas no peito, de dentro pra fora, dizendo "Hey! Estou aqui!!"

“E se eu pudesse entrar na sua vida?” mas “e se um dia ela despencar do céu”? Não é deliciosamente assustador de repente, e não mais que de repente, ver-se a si mesmo como personagem de todas as suas músicas e poemas preferidos?

E o que dizer do grito sufocado, do abraço interrompido... Hei! Mas como pode? Calma aí, falta terminar aquela história!!!

“Será que é mentira?? Será que é comédia?? Será que é divina?? Divina, divina...”

E de repente, ele se pegava fazendo planos para os próximos 10 anos, ao lado de alguém que ele não conhecia há nem 10 meses, mas que de alguma forma tinha 10 anos de história em comum com ele, ainda que durante todo esse período suas vidas nunca houvessem de fato se tocado. Eles existiram por 10 anos, paralelamente, vivendo a mesma vida em comum, sonhando os mesmos sonhos,  mas sem que se cruzassem. Louco, não? Demais!

Por que ter medo se é tão natural? Simples, meu caro. Porque é natural, mas é desconhecido. E o desconhecido assusta, faz as pernas tremerem. A gente aguenta tudo, todas as agruras e intempéries da vida, menos o desconhecido. O desconhecido é um monstro de sete cabeças, que nunca deixa que saibamos se fará carinhos ou torturas. E justamente por isso, você está aí, completamente embasbacado, sem saber se pula de cabeça ou se coloca só a ponta do dedão do pé na água fria.

Mas então... Vamos para a Patagônia? O Monte Roraima? Lyon? Guarulhos? Cidade Dutra? Três Corações? Grajaú? Mercadão? Vamos dormir até acordar? Vamos abraçar até sufocar?

Vamos descobrir o mundo juntos, baby? Quero aprender com teu pequeno grande coração... Drink up now, its gettin’ on time to close! Quer saber? Pois que se jogue. O medo é fraqueza covarde. O negócio é ir pra cima... E a vida que me diga, se isso foi agonia, se foi poesia, ou se simplesmente é rima. O que quer que seja, foi... E foi delicioso.

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Bom dia

Eram 7h48m. Faltavam 2 minutos para o despertador vociferar em sua orelha, mas ele já estava desperto. Os olhos perdidos fitavam os números das horas, enquanto o corpo se deixava prostrado na cama. 

Não queria levantar. Não queria sair daquele pedaço de ilusão aconchegante. Não por medo do dia - que raiava lindo do lado de fora das janelas fechadas - nem tampouco por medo da vida. Na verdade, ele não conseguia definir direito o que era aquela necessidade medonha de ficar sozinho, de fechar-se para o mundo.

Pensou que seria cômico sentar-se na cama, acender um cigarro e abrir uma cerveja. Não, não era o que ele tinha vontade de fazer, mas de alguma forma ele achou que seria uma cena interessante de interpretar. Bancar o boêmio intrépido, o poeta alucinado e verborrágico que desperta o fígado com um tapa na cara às 8h da manhã enquanto destila milhares de versos perdidos, rimados, angustiantes e apaixonados.

Imaginou-se com os cabelos desgrenhados, a barba por fazer e o olhar blasé fitando o horizonte estampando capas de revistas cult em bancas de jornais descoladas. Imaginou-se sendo lido nos botecos mais sujos, e nos bares mais requintados.

Talvez por isso não quisesse sair da cama. Estava sonhando acordado, e aquilo lhe dava um imenso prazer. "A vida inteira que podia ter sido e que não foi..." murmurava entre os lábios ressecados pela sede e pela preguiça de buscar um copo d´água. 

Queria ser lido. Queria ser consumido, musicado. Queria ter seus poemas todos publicados, e viver da arte. Morrer cedo, ser visceral. Atirar-se de cabeça na vida, dizer adeus à solidão e à mediocridade. Acordar antes do despertador, e ter vontade não de sair da cama e fazer a barba, mas de sentar-se nela e escrever uma obra prima.

Mas sonhar acordado não enche barriga. Pulou da cama, já atrasado, fez a barba, vestiu o terno, deu o nó maquinal na gravata e foi trabalhar. Melancólico e vertical.

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Ansiedade


Existem zonas cinzentas na nossa vida. Tipo zonas de amortecimento que separam uma fase da outra. E quando estamos nessa zona de amortecimento, prestes a mudar de uma fase pra outra, surge aquela coisa féladaputa chamada ansiedade.

Ansiedade que corrói por dentro, que tira o sono e o foco. Ansiedade que faz com que a gente tenha um mórbido desejo latente de entrar em coma por 2 ou 3 meses, só pra não ver o tempo passar. Vontade de dormir em setembro e acordar em janeiro. Essa ansiedade de quem espera a vez na fila, que vai aumentando exponencialmente a cada nova pessoa que é chamada, a cada passo vagaroso que a fila dá. E sempre surge aquele medo "mas vai dar tempo? E se chegar na minha vez e o guichê fechar? Ou se faltar tinta na impressora? Ou se a pessoa que está atendendo infartar?".

Já li em algum canto que ansiedade é excesso de futuro, ao passo que depressão é excesso de passado. Nada mais acertado. Ansiedade é não conseguir viver a porra do presente, porque tudo o que você quer está logo ali, logo mais, no futuro. Só que a ansiedade não bate forte no primeiro ano da faculdade de direito. Ela arrebenta é no último semestre... A ansiedade só surge na boca do gol, ansiedade pelo futuro próximo, pelo desejo na iminência de ser saciado. Loucura isso!

Respira fundo, e pula. Fecha os olhos e vai! Se joga, se atira no nada, na amplidão do futuro, sem medo. Domar a ansiedade da queda e seguir tranquilo durante o voo. "Arranca, vida / Estufa, veia / E pulsa, pulsa, pulsa, / Pulsa, pulsa mais..." É isso!

domingo, 18 de agosto de 2013

Um conto: retalhos de MPB

Eis aqui tudo de novo, a mesma grande saudade, a mesma grande vontade. Ponho o meu sapato novo e vou passear, sozinho, como der. Eu bato o portão sem fazer alarde, eu levo a carteira de identidade. Se você quer me seguir, não é seguro. Hoje eu quero sair só. Chego a mudar de calçada quando aparece uma flor. Forte eu sou mas não tem jeito, hoje eu tenho que chorar.

Preciso andar, vou por aí a procurar, rir pra não chorar. Se alguém por mim perguntar, diz que fui por aí levando o violão debaixo do braço. Eu já conheço os passos dessa estrada, sei que não vai dar em nada. Seu segredos, eu sei de cor. Pois é, então. Você não compreendeu que o ciúme é um mal de raiz, e que ter medo de amar não faz ninguém feliz.

Tenho um peito de lata e um nó de gravata no coração.Tenho uma vida sensata, sem emoção. Não me venha falar na malícia de toda mulher, cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é. Basta de clamares inocência,eu sei todo o mal que a mim você fez. 

Você desconhece consciência, só deseja o mal a quem o bem te fez.Ah, eu quero te dizer que o instante de te ver, custou tanto penar. Eu quero te contar das chuvas que apanhei,das noites que varei no escuro a te buscar.

Valei-me, deus! Você sabe o que é ter um amor, meu senhor? Ter loucura por uma mulher? Queixo-me às rosas: há pessoas de nervos de aço, sem sangue nas veias e sem coração.Foi um rio que passou em minha vida, e meu coração se deixou levar.O resto é mar, é tudo que não sei contar, são coisas lindas que eu tenho pra lhe dar. Vou seguir os conselhos de amigos, e garanto que não beberei nunca mais. E com o tempo esse imenso vazio que sindo, se esvai. 

E se, de repente a gente não sentisse a dor que a gente finge e sente? E quando de repente atravessando a mesma rua engarrafada, em cada luz de mercúrio vejo a luz do teu olhar. Passas praças, viadutos nem te lembras de voltar... E quando a gente descobrir que as coisas não são mais como propunha o passado pro futuro, quem havia de dizer?

Se fosse resolver, iria te dizer: foi minha agonia.Pobre de mim, sonhar contigo, jamais. Ah, se eu pudesse, não caía na tua conversa mole outra vez, não dava mole à tua pessoa.

Ai, a lua que no céu surgiu não é a mesma que te viu. A insensatez que você fez, mulher sem razão! Eu conheço o medo de ir embora, não saber o que fazer com a mão. E eu sinto assim todo o meu peito se apertar, por que parece que acontece de repente, como um desejo de eu viver sem me notar.

Adeus, você. Eu hoje vou pro lado de lá. Num trem para a estrelas, depois dos navios negreiros, outras correntezas. Eu queria ver no escuro do mundo. Será que você ainda pensa em mim? A Luz negra de um destino cruel ilumina um teatro sem cor onde eu tô representando o papel de palhaço do amor.

É, meu amigo, só resta uma certeza, é preciso acabar com essa tristeza, é preciso inventar de novo o amor.É melhor ser alegre que ser triste, alegria é a melhor coisa que existe. Mas pra fazer um samba com beleza, é preciso um bocado de tristeza, senão, não se faz um samba não.


*Referência Bibliográfica (atendendo a pedidos):
Tudo de novo - Caetano Veloso
Sapato Novo - Los Hermanos 
Trocando em Miúdos - Chico Buarque 
Hoje eu quero sair só - Lenine 
Samba do Grande amor - Chico Buarque 
Travessia - Milton Nascimento 
Preciso me encontrar - Candeia 
Diz que fui por aí - Nara Leão 
Retrato em Branco e Preto - Chico Buarque 
Medo de amar - Vinicius de Morais 
Cara a Cara - Chico Buarque 
Dom de Iludir - Caetano Veloso 
Basta de clamares inocência - Cartola Sem 
Fantasia - Chico Buarque 
Flor de Lis - Djavan 
Nervos de aço - Jamelão 
As rosas não falam - Cartola 
Foi um rio que passou  - Paulinho da Viola 
Wave - Tom Jobim 
Peito Vazio - Cartola 
Fantasia - Chico Buarque 
Quem havia de dizer - Oswaldo Montenegro
Paralelas - Belchior 
Agonia - Oswaldo Montenegro 
Se eu soubesse - Chico Buarque
Serenata do adeus - Vinicius de Morais 
Insensatez - Tom Jobim 
Mulher sem razão - Cazuza 
Estrada nova - Oswaldo Montenegro 
Gente Humilde - Chico Buarque 
Adeus, você - Los Hermanos 
Um trem para as estrelas - Cazuza 
Quase um segundo - Cazuza
Luz Negra - Cazuza 
Carta ao Tom 74 - Vinicius de Morais 
Samba da bênção - Vinicius de Morais

terça-feira, 6 de agosto de 2013

Para a Eternidade


Mal saíra do hospital e já estava novamente no bar.
“Se continuar vivendo assim, vai morrer” lhe disse o médico enquanto a porta fechava e ele acendia uma cigarro.

“Você também, doutor, vai morrer se continuar vivendo” disse ele guardando o isqueiro no bolso.

“Não foi iss…”A porta fechou-se e ele não ouvia mais nada.

O calor estava insuportável. Já não aguentava mais esse calor. Sua camisa branca já mostrava as marcas de suor na região da barriga e costas, sua fronte escorria, enchendo as sobrancelhas daquela água salgada e etílica que emanava do seu corpo. Dava para sentir o gosto do whisky da noite anterior. O gosto de whisky, o gosto de buceta e aquele gosto amargo.

Ele – esse cidadão sem nome – comprou uma garrafa de vinho barato, daquele vinho que foi proíbido de vender na cidade, e sentou-se na Avenida Paulista para olhar o gado e imaginar os fazendeiros.

Quando foi? Quando foi que eles conseguiram enganar a todos? Ou pelo menos quase todos. Quando foi que escrever um livro, ter um filho e plantar uma árvore virou verdade nacional – ou seria internacional? Quando foi que colocaram na nossa cabeça que temos que morrer o mais velho possível, o mais tarde possível, mesmo que isso envolva noites de desespero familiar numa cama de hospital, com um corpo estragado por tubos e medicamentos. O cérebro ainda funciona e ele fala – me mate – mas ninguém ouve.

Ninguém.
Ouve.


Levantou-se. Cansou de observar quando as lágrimas começaram a escorrer-lhe da face. Vivia num mundo que não lhe fazia sentido e cada vez mais seu coração ficava apertado pela ausência de profundidade, de verdade, de realidade desse mundo. Foi por causa dessa ausência que ele sempre preferiu aquilo que não fazia parte.

Ele não fazia parte.

As prostitutas da baixa classe sabem o que é a vida mais do que as vagabundas da televisão. Os bêbados do centro da cidade sabem mais desse mundo do que aqueles alcóolatras engravatados que se formaram em Harvard. Os viciados em crack da Luz são mais honestos do que aqueles que tomam remédios para curar a tristeza.

“VIVA A SUA TRISTEZA!” ele gritou defronte uma farmácia.

Sabia que sua vida não duraria muito, mas isso não lhe importava. Preferia a morte de indignação aos 30 anos do que a morte de servidão aos 85. A cada queimação no estômago, a cada aperto no peito, a cada catarro mais escuro ele sentia o toque da tão esperada amiga.

“O que tem do outro lado?” ele perguntara para a vagabunda mais suja que já havia transado sem camisinha.

“alguma coisa melhor que aqui” respondeu-lhe depois do pico de heroína.

Os anos foram se passando na vida desse cidadão sem nome. Ele continou comendo suas comidas gordurosas, continuou sem fazer exercícios e comendo vagabundas sujas sem proteção. Continuou fumando seu maço de cigarro por dia e bebendo suas três garrafas de whisky por semana. Whisky barato, no seu quarto barato, da sua casa barata.

As baratas continuavam rodando o local trazendo mais alegria para ele do que toda a humanidade, com exceção de algumas pessoas. Algumas poucas pessoas que o os anos lhe roubara.

Os anos se passaram e, mesmo que ele tentasse diariamente, sua amiga não vinha lhe visitar.

“Acho que a morte esqueceu de mim”dizia ele para os bêbados do centro da cidade. Para aqueles mesmos bêbados de 100 anos atrás que ainda esforçavam-se para serem diferentes.
Aqueles bêbados que já foram artistas, atores, autônomos, autistas.

Agora nada restava para aqueles bêbados, a não ser a certeza da loucura que eles nunca quiseram tratar com escolas e universidades e chefes e certezas.

“Quando abre-se mão de tudo, até da morte você escapa.” Ele pensou antes de pular da ponte e sair nadando rio abaixo.

terça-feira, 9 de julho de 2013

Refluxo de lirismo

"Eu só preciso sonhar... Eu só preciso sonhar..."

Ele balbuciava essas palavras como um mantra enquanto forçava mais uma dose de cachaça goela abaixo. Chegou no limite. Uma hora isso ia acontecer, e aconteceu: o corpo reclamava, declinava, refugava. O estômago travava antes de a cabeça levantar vôo. Era desesperador, ele simplesmente não conseguia mais ficar bêbado. E com isso, foi-se o último refúgio, a última esperança. Aquele último abrigo pra onde ele corria e se escondia da dor já não existia mais.

Não poder fugir da realidade era cruel. Porque a realidade dele era cruel. Era amarga.

Conheceram-se havia dez anos. Exatos dez anos... Viveram juntos - intrinsecamente juntos - por sete anos, sendo cinco deles sob o mesmo teto. Foi de repente, depois de um final de semana corriqueiro na casa dos pais, que ela se virou e disse: é o fim. Assim, seco, direto, como murro certeiro na boca do estômago. 

Pior... Foi como murro que sai do além, que surge do nada, sem corpo por detrás, sem uma cara, sem uma briga, sem uma voz exasperada que o anuncie em insultos e palavrões, nada! Simplesmente atinge em cheio o estômago, e espalha a dor lancinante junto com a impotência da falta de ar.

Era esse o seu maior desgosto. Relacionamentos acabam, têm começo-meio-e-fim, ele sempre soube  e entendia bem. Mas tudo que acaba anuncia o seu fim... Como a garrafa que vai ficando mais leve, ou o copo que vai ficando mais quente... O fim sempre anuncia sua iminência, de forma que podemos tentar evitá-lo, ou ao menos nos prepararmos para sua chegada.

Com ela não foi assim. Foi súbito. Foi o beijo apaixonado na rodoviária e, setenta e duas horas depois, malditas setenta e duas horas depois, o fim. Repentino, decidido, curto e grosso. E então ela partiu sem olhar pra trás. E de repente, tornou-se rude. E ele, tornou-se um estranho em sua vida. Ela ficou ríspida, como se a existência dele a ofendesse. Como pode ser possível? Como um ser humano é capaz de sentir tamanha paixão e, de repente, extirpar de si aquele amor como se fosse um câncer?  Por que não avisou? Por que não disse que pra ela tudo andava mal? Por que o fez crer que caminhava nas nuvens enquanto na verdade caminhava em direção ao abismo? Por que diabos ela tentara salvar o relacionamento de forma unilateral, sem compartilhar com ele as angústias e tormentos?

Ainda que tivesse acabado... Não poderia ser mais humano? Não poderia o fim ter sido precedido de uma crise? De uma briga? Uma bronca? Um questionamento insatisfeito???? 

Ele não a culpava pelo fim - claro que todos têm o direito de querê-lo. Ele a culpava pela forma como ela o atropelara e saia cantando pneus, sem nem olhar pra trás.

Não teria saudade? Nenhuma pontinha? De nada? Nem do bife de chorizo, ou do vinho que tomavam juntos? Das tardes, dos filmes, dos planos... Não sentiu falta de nada? De nem um ponto e vírgula desse conto mal escrito que virou o relacionamento deles?

Eram muitas perguntas para pouquíssimas respostas. Ele fechou os olhos marejados, e pediu mais uma dose.

sábado, 22 de junho de 2013

O Caos.

"Ah: fumarás demais, beberás em excesso, aborrecerás todos os amigos com tuas histórias desesperadas, noites e noites a fio permanecerás insone, a fantasia desenfreada e o sexo em brasa, dormirás dias adentro, faltarás ao trabalho, escreverás cartas que não serão nunca enviadas, consultarás búzios, números, cartas e astros, pensarás em fugas e suicídios em cada minuto de cada novo dia, chorarás desamparado atravessando madrugadas em tua cama vazia, não conseguirás sorrir nem caminhar alheio pelas ruas sem descobrires em algum jeito alheio o jeito exato dele, em algum cheiro o cheiro preciso dele.Que não suspeitará de tua perdição, mergulhado como agora, a teu lado, na contemplação dessa paisagem interna onde não sabes sequer que lugar ocupas, e nem mesmo estás.

Na frente do espelho, nessas manhãs maldormidas, acompanharás com a ponta dos dedos o nascimento de novos fios brancos nas tuas têmporas, o percurso áspero e cada vez mais fundo dos negros vales lavrados sob teus olhos profundamente desencantados. Sabes de tudo sobre esse possível amargo futuro. Sabes também que já não poderias voltar atrás, que estás inteiramente subjugado e as tuas palavras, sejam quais forem, não serão jamais sábias o suficiente para determinar que essa porta a ser aberta agora, logo após teres dito tudo, te conduza ao céu ou ao inferno. Mas sabes principalmente, com uma certa misericórdia doce por ti, por todos, que tudo passará um dia, quem sabe tão de repente quanto veio, ou lentamente, não importa.Só não saberás nunca que neste exato momento tens a beleza insuportável da coisa inteiramente viva."
Caio Fernando Abreu.


E de repente, vem de dentro aquela incessante vontade de errar, de vagar, de cair pelo mundo sem rumo. De gritar, de questionar, de voltar no tempo, rasgar-se  novamente - e sempre, fazer tudo igual mas de forma diferente, e reconstruir aquilo que simplesmente se desmanchou no ar - e você não sabe por que.

Não sabe por que não entende como podem as coisas terem começo-meio-e-fim em tempos diferentes para pessoas diferentes. Não sabe porque não entende - e não aceita- que o fim dele chegou antes do seu. Não entende como podem dois universos se fundirem e se partirem com tanta facilidade. Não suporta imaginar que a sua dor lateja enquanto a dele sequer existe. Acha injusto, se rebela, se debate, se questiona, tenta se apegar a detalhes e resquícios do passado, que só servem para esfregar na sua cara que o presente não faz sentido.

E aí não tem pra onde fugir, nem como se esconder. Você sabe que só vai esquecer o castelo de areia que a vida lhe implodiu com um tapa quando construir outro castelo, mas castelos não se constroem do nada, e nesse meio tempo você sofre. Se contorce,  se debate. Sente a vida amarga, correndo em forma de calafrio pela espinha. Sente ódio quando na verdade sabe que tem amor. Substitui a lacuna da ferida aberta no coração pela raiva, pela amargura, pelo maldizer. Sente-se um lixo por dentro enquanto tenta sorrir.

E a pergunta que sempre fica no ar é "por que"? Por que comigo? E aí a garganta seca, e o silêncio lhe responde. É porque é. Foi porque foi. Bem vinda à vida. E quanto mais alto o vôo, maior a queda. E você vai se sentir calejada, não vai mais querer sofrer isso nunca mais. Vai negar, vai ser fria, vai tratar pessoas como objeto, vai criar uma casca blindada para não se ferir - e com isso também deixará de sentir. E nunca mais construirá castelos de areia, mas apenas amontoados de pedras disformes.

Vai se jogar no caos, na esbórnia, na balbúrdia, vai perder o foco e errar a mão. Vai se perder, e perdida, se afogar cada vez mais na própria solidão. É que a vida, minha cara, é ingrata pra quem sente. É ingrata para pessoas como você, sentimentalóides e românticas. A vida é feita para quem mente, para quem engana, para quem pisa e passa por cima. Não para gente como você. Mas você nuca vai mudar, não é verdade? E enquanto o outro ri, você sofre, mas um dia a própria vida dará o troco - para  o outro e para você.